Conexões de Saberes-UFG

19 março, 2007

Marcados no coração

O dia-a-dia neste período de minha vida era de pouca diversão. Tinha 13 anos. Mas conheci um grande número de pessoas e fiz amizades inesquecíveis. O que vivi neste período faz parte do que sou hoje. Valores humanos, olhar a pessoa por dentro, no fundo dos olhos, sem observar vestuário e modos, eu aprendi até com aqueles que se juntavam para fazer pequenos furtos e arrumar brigas com gangues adversárias.

Na padaria da minha mãe onde trabalhava de dia e a noite, mantinha contato com os outros comerciantes e neste convívio os laços se tornam fraternos. O dono do pregão, o chaveiro e seus filhos, a mecânica, do conserto de bicicletas, da lanchonete concorrente, os funcionários da loteria, enfim todos trocavam experiências e vivências.

Nas intermináveis tarde atrás do balcão, preocupado com moscas e a limpeza do ambiente, tinha um companheiro fiel e zeloso. O Chico era um solitário senhor de seus 50 anos que realmente não batia muito bem da cabeça. O que ele mais repetia era que queria um gole de café com um cigarro. Não fazia mal a ninguém e se deixasse fumava uma carteira de cigarro em três horas.

O Chico tinha uma mania muito especial: limpar a calçada. Mas não era com vassoura não, era na mão mesmo. Abaixava e levantava para recolher tudo que era de se jogar no lixo e deixava a calçada limpa. De certa forma incomodava, porque acreditávamos ser uma atividade inútil. A gente proibia, pedia para parar, mas não tinha jeito, era o que queria fazer. E a inutilidade estava em nós de acharmos sua atividade sem fins.

Num domingão daqueles de nada e ninguém, estávamos nós, sentados olhando a rua quando de repente aparece um carro da ROTAM (polícia especial de Goiânia que mete medo em qualquer um). Os policiais vieram de ré, quase enfiaram o carro dentro da panificadora Santo Cristo e desceram todos de uma só vez. Juro que assustei.

Nessa época o Chico enfiou na cabeça que precisava de hum milhão de reais emprestado para comprar um caminhão e ajudar um sobrinho que tinha um comércio de frutas no Ceasa. Pedia emprestado para quem via pela frente. E jurava pagamento do mesmo na semana seguinte. Eu mesmo escutava isso o dia todo.

Pois então, o tenente, mais quatro soldados, pediu uma Coca – Cola para beber. Eu só tinha Pespi. Fez cara feia, relutou, quase foi embora, mas aceitou. Nisso o meu querido amigo Chico se aproximou, olhou bem na cara do policial e anunciou: “Hei, me empresta hum milhão até semana que entra. Eu te pago”. Na hora fiquei preocupado, expliquei e o policial entendeu. Com a negativa do PM, restou ao Chico pedir um pouco de refrigerante e um cigarro do que o mesmo fumava. Eu dei risada o resto do dia. Ele também. Tenho muitas saudades dele, como queria revê-lo.

Os momentos difíceis eram proporcionados pelos marginais que na padaria apareciam. O pior era o Sorriso. Bebia refrigerante, comia bolo, salgado, rosca, tomava sorvete e nunca pagava. Quando não se retirava me olhando com aquela cara irônica era porque um caminhão chamava toda a sua atenção.

Tinha um quebra-mola na frente da panificadora, que quando o caminhão reduzia a velocidade para passar, o Sorriso saia correndo, pegava rabeira e furtava o que tinha em cima. Era impressionante a agilidade dele. Descia botijão de gás como quem bebe água. E sempre dava fim no produto de roubo.

Às vezes sumia semanas, mas quando aparecia me aterrorizava. Já chegava sorrindo e eu quase morrendo. Um dia a noite estava no telefone a conversar com uma amiga quando o Sorriso apareceu de fininho. Desta vez não tinha aquele sorriso, estava afoito, ansioso, agitado. Depois de alguns minutos, invadiu a padaria foi até o caixa e tentou pegar o dinheiro que ali tinha.

Entramos em luta corporal, trocamos empurrões até que ele desistiu e me devolveu a grana. Ficamos um tempo calado. O Sorriso então começou a falar: “num quero te roubar não é que eu tava preso e estou na fissura para fumar merla (que usa o resto de cocaína misturada a solução de bateria e é vendida em pequenas latas de alumínio. Uma das piores drogas que já conheci)”.

Nisso o Sorriso começou a esmurrar uma parede chamuscada com tanta força que sua mão começou a sangrar. Passou o primeiro caminhão e o motorista percebeu. O segundo também. Ele voltava mais nervoso e agitado. Foram umas cinco porradas. Não agüentei ver seu estado de abstinência, sua mão sangrava muito. Peguei dez reais e lhe entreguei. O Sorriso agradeceu e no primeiro caminhão ele se agarrou na busca da substância que o deixava naquele estado. Na outra semana comeu, bebeu refrigerante e como sempre saiu sem pagar.

Vasconcelos Neto, estudante de jornalismo e bolsista


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